DA CHEGADA DO NAVIO

AL-MUSTAFA, o Eleito e o Bem-Amado, que era uma aurora em seu próprio dia, esperava havia doze anos, na cidade de Orphalese, o regresso de seu navio que o levaria de volta à ilha onde nascera.
E no ano décimo segundo, ao sétimo dia de Ailul, o mês da colheita, galgou o monte fora da cidade e olhou para o mar; e deparou com o navio chegando com a névoa.
Então, as portas de seu coração abriram-se, e sua alegria voou longe sobre o mar. E, fechando os olhos, orou no silêncio de sua alma.
Mas ao descer o monte, foi invadido pela tristeza, e pensou no seu coração:
“Como poderei ir-me em paz e sem pena? Não, não será sem um ferimento na alma que deixarei esta cidade.
Longos foram os dias de amargura que passei dentro de suas muralhas, e longas as noites de solidão; e quem pode despedir-se sem tristeza de sua amargura e de sua solidão?
Muitos foram os pedaços de minha alma que espalhei nestas ruas, e muitos são os filhos de minha ansiedade que caminham, desnudos, entre estas colinas, e não posso abandoná-los sem me sentir oprimido e entristecido.
Não é uma simples vestimenta que dispo hoje, mas a própria pele que arranco com minhas mãos.
E não é um mero pensamento que deixo atrás de mim, mas um coração enternecido pela fome e a sede.
Contudo, não posso demorar-me por mais tempo.
O mar, que chama a si todas as coisas, está-me chamando, e devo embarcar.
Pois permanecer aqui, enquanto as horas se queimam na noite, seria congelar-me e cristalizar me num molde.
De bom grado levaria comigo tudo o que aqui está. Mas como fazê-lo?
A voz não leva consigo a língua e os lábios que lhe deram asas.
É isolada que deve procurar o éter.
É também só, e sem o ninho, que a águia voa rumo ao sol.”
E quando atingiu o sopé da colina, virou-se novamente para o mar e viu seu navio aportar e, no convés, agruparem-se os marinheiros, os homens de sua terra natal.
E sua alma gritou e disse-lhes:
“Filhos de minha velha mãe, que correis na crista das vagas impetuosas.
Quantas vezes navegastes nos meus sonhos. E agora chagais ao meu despertar, que é meu sonho mais profundo.
Disposto encontrais-me a partir, e minha impaciência, de velas desfraldadas, está à espera do vento.
Tomarei apenas mais um hausto de ar neste recanto sereno, volverei para trás somente mais um olhar afetuoso.
E, logo após, juntar-me-ei a vós, marujo entre marujos.
E tu, vasto mar, mãe sempre acordada, Que, sozinho, és paz e liberdade para o rio e o regato,
Uma só volta fará ainda esta corrente, um só murmúrio sussurará ainda nesta clareira, Depois, virei a ti, gota ilimitada a um oceano ilimitado.”
E enquanto caminhava, viu homens e mulheres abandonando suas hortas e vinhedos e apressarem-se rumo às portas da cidade.
E ouviu-os chamarem seu nome e anunciarem de campo a campo, uns aos outros, a chegada de seu navio.
E disse consigo mesmo:
“Será, acaso, o dia da separação o dia do encontro? E será dito que meu anoitecer era, na verdade, minha aurora?
E o que oferecerei àquele que deixou seu arado no meio do rego e àquele que imobilizou a roda de seu lagar?
Converter-se-á meu coração numa árvore de abundantes frutos que colherei e lhes
distribuirei?
E correrão meus desejos como um manancial onde lhes encherei os copos?
Sou, acaso, uma harpa para que em mim toque a mão do Onipotente, ou uma flauta para que Seu sopro me atravesse?
Um ser em procura de silêncios, eis o que sou, e que tesouros tenho descoberto nos meus silêncios que possa distribuir com segurança?
Se este é o dia de minha colheita, em que campos plantei a semente, e em que estações esquecidas?
Se esta é, na verdade, a hora de levantar minha lanterna, a chama que nela brilhará não será minha.
Vazia e apagada erguerei minha lâmpada.
E o guardião da noite a abastecerá de azeite e a acenderá também.”
Essas coisas, ele as expressou em palavras. Mas muitas outras permaneceram inexpressas no seu coração. Pois nem ele podia externar seu segredo mais profundo.
E quando entrou na cidade, o povo inteiro o recebeu, e todos estavam clamando seu nome numa só voz.
E os anciãos da cidade aproximaram-se e disseram:
“Não nos deixes ainda.
Foste um meio-dia em nosso crepúsculo, e tua juventude deu-nos sonhos para sonhar.
Não és um estrangeiro nem um hóspede entre nós, mas nosso filho e nosso bem-amado.
Não condenes ainda nosso olhar a sofrer a fome de tua face.”
E os sacerdotes e as sacerdotisas disseram-lhe:
“Não consintas que as ondas do mar nos separem e que os anos que conosco passaste se tornem uma lembrança.
Andaste entre nós como um espírito, e tua imagem tem sido uma luz que nos iluminou as faces.
Muito te temos amado. Mas silencioso foi nosso amor, e com véus tem estado coberto.
Agora, porém, ele grita e chama-te em alta voz e quer revelar-se a ti.
Pois assim tem sido sempre com o amor: ele só conhece a sua profundidade na hora da separação.”
E outros vieram também e imploraram-lhe. Mas ele não lhes respondeu. Baixou apenas a cabeça. E os que o rodeavam viram lágrimas caírem sobre seu peito.
E caminhando com o povo, chegou à grande praça em frente ao templo.
E uma mulher chamada Almitra saiu do santuário. E ela era vidente.
E ele a encarou com excessiva ternura, pois fora ela a primeira a procurá-lo e nele crer no dia de sua chegada à cidade.
E ela o saudou, dizendo:
“Profeta de Deus em procura do infinito, quantas vezes sondaste as distâncias à espera de teu navio.
E agora teu navio chegou, e tu deves partir.
Profunda é tua nostalgia pela pátria de tuas recordações e a morada de teus desejos maiores; e nosso amor não te quer prender, nem nossas necessidades te reterem.
Uma coisa, porém, pedimos-te: antes de nos deixares fala-nos e dá-nos de tua verdade.
E nós a transmitiremos a nossos filhos, e eles a transmitirão aos seus filhos, e ela não perecerá.
Na tua soledade, vigiaste por nossos dias e, na tua vigília, escutaste os gemidos e os risos de nosso sono.
Agora, revela-nos a nós próprios, e conta-nos o que te foi dado descobrir do que existe entre o nascimento e a morte.”
E ele respondeu:
“Povo de Orphalese, de que poderia falar-vos senão do que está agora se movendo dentro de vossas almas?”

DO AMOR

Quando o amor vos chamar, segui-o,
Embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados;
E quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe,
Embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos;
E quando ele vos falar, acreditai nele,
Embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos
Como o vento devasta o jardim.
Pois, da mesma forma que o amor vos coroa,
Assim ele vos crucifica.
E da mesma forma que contribui para vosso crescimento,
Trabalha para vossa poda.
E da mesma forma que alcança vossa altura
E acaricia vossos ramos mais tenros que se embalam ao sol,
Assim também desce até vossas raízes
E as sacode no seu apego à terra.
Como feixes de trigo, ele vos aperta junto ao seu coração.
Ele vos debulha para expor vossa nudez.
Ele vos peneira para libertar-vos das palhas.
Ele vos mói até a extrema brancura.
Ele vos amassa até que vos torneis maleáveis.
Então, ele vos leva ao fogo sagrado e vos transforma
No pão místico do banquete divino.
Todas essas coisas, o amor operará em vós
Para que conheçais os segredos de vossos corações
E, com esse conhecimento,
Vos convertais no pão místico do banquete divino.
Todavia, se no vosso temor,
Procurardes somente a paz do amor e o gozo do amor,
Então seria melhor para vós que cobrísseis vossa nudez
E abandonásseis a eira do amor,
Para entrar num mundo sem estações,
Onde rireis, mas não todos os vossos risos,
E chorareis, mas não todas as vossas lágrimas.
O amor nada dá senão de si próprio
E nada recebe senão de si próprio.
O amor não possui, nem se deixa possuir.
Porque o amor basta-se a si mesmo.
Quando um de vós ama, que não diga:
"Deus está no meu coração",
Mas que diga antes:
"Eu estou no coração de Deus".
E não imagineis que possais dirigir o curso do amor,
Pois o amor, se vos achar dignos,
Determinará ele próprio o vosso curso.
O amor não tem outro desejo
Senão o de atingir a sua plenitude.
Se, contudo, amardes e precisardes ter desejos,
Sejam estes os vossos desejos:
De vos diluirdes no amor e serdes como um riacho
Que canta sua melodia para a noite;
De conhecerdes a dor de sentir ternura demasiada;
De ficardes feridos por vossa própria compreensão do amor
E de sangrardes de boa vontade e com alegria;
De acordardes na aurora com o coração alado
E agradecerdes por um novo dia de amor;
De descansardes ao meio-dia
E meditardes sobre o êxtase do amor;
De voltardes para casa à noite com gratidão;
E de adormecerdes com uma prece no coração para o bem-amado,
E nos lábios uma canção de bem-aventurança.

De: Gibran Khalil Gibran
O Profetawww.youtube.com/embed/MFFy2VyquEo

REFLEXÃO:
O amor entre duas pessoas , não deveria buscar razões de segurança, que a única segurança real não está em ter ou possuir, não em ser tido ou possuído, não em exigir ou esperar e nem sequer em esperar que o que pensam que necessitam na vida lhe proporcionará o outro, mas sim, sabendo que tudo o que necessitam na vida, todo o amor, toda a sabedoria, toda a perspectiva, todo o poder, todo o conhecimento, toda a compreensão, toda a nutrição, toda a compaixão e toda a fortaleza, reside dentro de cada ser , e que nenhum dos cônjuges se casa com o outro com a esperança de obter essas coisas, a não ser com a esperança de dar estes presentes, que o outro os tenha até com a maior abundância.
O amor inabalável não pode limitar, controlar, obstaculizar ou restringir-se mutuamente de qualquer expressão verdadeira e celebração honesta disso que é o melhor e o supremo no íntimo de cada ser, incluindo seu amor a Deus, seu amor à vida, seu amor às pessoas, seu amor à criatividade, seu amor ao trabalho ou qualquer aspecto de seu ser que os represente genuinamente e lhes proporcione alegria.
O amor é uma poesia, descobrir o outro é uma aventura
Sonhar juntos, uma fonte de prazer
troca experiências, um convite a maturidade
O amor se entrega, não procura os próprios interesses , inclui, sonha junto
Não é tecido de ciúmes, despe-se da soberba e veste-se da humildade
O amor revigora o cansado, anima o abatido, encoraja o ferido...
O amor não controla, não domina, não bloqueia a inteligência...
Promove a liberdade, realça a auto-estima, reacende a esperança...
O amor une, ata, entrelaça... O amor rompe todas as barreiras e aproxima todas as distâncias.

DA ALEGRIA E DA TRISTEZA

Vossa alegria é vossa tristeza desmascarada.
E o mesmo poço que dá nascimento a vosso riso foi muitas vezes preenchido com vossas
lágrimas.
E como poderia não ser assim?
Quanto mais profundamente a tristeza cavar suas garras em vosso ser, tanto mais alegria
podereis conter.
Não é a taça em que verteis vosso vinho a mesma que foi queimada no forno do oleiro?
E não é a lira que acaricia vossas almas a própria madeira que foi entalhada à faca?
Quando estiverdes alegres, olhai no fundo de vosso coração, e achareis que o que vos deu
tristeza é aquilo mesmo que vos está dando alegria.
E quando estiverdes tristes, olhai novamente no vosso coração e vereis que, na verdade, estais
chorando por aquilo mesmo que constituiu vosso deleite.
Alguns dentre vós dizeis: ‘A alegria é maior que a tristeza’, e outros dizem: ‘Não, a tristeza é
maior.’
Eu, porém, vos digo que elas são inseparáveis.
Vêm sempre juntas; e quando uma está sentada à vossa mesa, lembrai-vos de que a outra
dorme em vossa cama.
Em verdade, estais suspensos como os pratos de uma balança entre vossa tristeza e vossa
alegria.
É somente quando estais vazios que estais em equilíbrio.
Quando o guarda do tesouro vos suspende para pesar seu ouro e sua prata, então deve a vossa
alegria e a vossa tristeza subir ou descer.


O Profeta - Khalil Gibran:  www.youtube.com/embed/8KClV9x296E

DOS FILHOS

Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, porque eles têm seus próprios
pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas; pois suas almas moram na mansão do
amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós, porque a vida
não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O Arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a Sua força para que Suas
flechas se projetem, rápidas para longe.
Que vosso encurvamento na mão do Arqueiro seja vossa alegria: pois assim como Ele ama a
 flecha que voa, ama também o arco que permanece estável.”

O Profeta. Gibran Khalil Gibran

DO MATRIMÔNIO

Vós nascestes juntos, e juntos permanecereis para todo o sempre.
Juntos estareis quando as brancas asas da morte dissiparem vossos dias.
Sim, juntos estareis até na memória silenciosa de Deus.
Mas que haja espaço na vossa junção e que os ventos do céu dancem entre vós.
Amai-vos um ao outro, mas não façais do amor um grilhão: que haja antes um mar ondulante
entre as praias de vossas almas.
Enchei a taça um do outro, mas não bebais na mesma taça.
Dai de vosso pão um ao outro, mas não comais do mesmo pedaço.
Cantai e dançai juntos, e sede alegres, mas deixai cada um de vós estar sozinho, assim como
as cordas da lira são separadas e, no entanto, vibram na mesma harmonia.
Dai vossos corações, mas não os confieis à guarda um do outro.
Pois somente a mão da vida pode conter vossos corações.
E vivei juntos, mas não vos aconchegueis em demasia; pois as colunas do
templo erguem-se separadamente, e o carvalho e o cipreste não crescem à sombra um do outro.
O Profeta. Gibran Khalil Gibran

DAS LEIS

Então, um advogado disse: 
“Que pensas de nossas leis, mestre?"

E ele respondeu: “Vós vos deleitais em estabelecer leis, mas deleitai-vos ainda mais em violá-las, como crianças que brincam à beira do oceano, edificando pacientemente torres de areia e, logo em seguida, destruindo-as entre risadas. Mas enquanto edificais vossas torres de areia, o oceano atira mais areia à praia, e quando as destruís, o oceano ri convosco. Na verdade, o coeano sempre ri com os inocentes. Que dizer porém, daqueles para quem a vida não é um oceano, nem as leis baixadas pelo homem, torres de areia, aqueles para quem a vida é uma pedra, e a lei, um cinzel com o qual procuram esculpi-la à sua própria imagem? Que dizer do aleijado que odeia os bailarinos? E do boi que gosta de seu jugo e considera o gamo e o cervo seres extraviados e vagabundos? E da serpente idosa que não pode mais largar a pele e qualifica todas as outras de desnudas e impudicas? E daquele que chega cedo ao banquete de núpcias e, depois, saciado e esgotado, segue seu caminho, dizendo que todo festim é uma violação da lei e todo festejador, um culpado? Que direis desses todos, senão que eles também se mantêm na claridade do sol, mas de costas para o sol? Vêem somente suas sombras, e suas sombras são suas leis. E que é o sol para eles senão um lançador de sombras? E que é reconhecer as leis senão curvar-se e delinear essas sombras sobre a terra? Vós, porém, que caminhais encarando o sol, que imagens desenhadas sobre a terra vos podem deter? Vós que viajais com o vento, que cata-vento orientará vosso curso? Que lei humana vos poderá atar quando quebrardes vosso jugo, mas não à porta de uma prisão humana? Que leis temereis se dançardes sem tropeçar em nenhuma cadeia de ferro feita pelo homem? E quem vos poderá acusar em juízo se rasgais vossas vestimentas sem as atirar no caminho alheio? Povo de Orphalese, podeis abafar o tambor e afrouxar as cordas da lira, mas quem poderá proibir à calhandra de cantar?

DO BEM E DO MAL

E um dos anciãos da cidade disse:“Fala-nos do bem e do mal.” 

E ele respondeu: “Do bem que está em vós, poderei falar, mas não do mal. Pois que é o mal senão o próprio bem torturado por sua fome e sede? Em verdade, quando o bem sente fome, procura alimento até nos antros escuros, e quanto sente sede, desaltera-se até em águas estagnadas. Vós sois bons quando vos identificais com vós mesmos. Mas não sois maus quando deixais de vos identificar com vós mesmos. Pois a casa que se divide não se torna antro de ladrões: é, apenas, uma casa dividida. E um navio sem leme pode vaguear sem rumo entre recifes perigosos, e não se afundar. Vós sois bons quando vos esforçais por dar de vós próprios. Mas não sois maus quando vos limitais a procurar o lucro. Pois, quando lutais pelo lucro, sois simplesmente raízes que se agarram à terra e lhe sugam o seio. Certamente, a fruta não pode dizer à raiz: ‘Sê como eu, madura e plena, e sempre generosa de tua abundância.’ Pois, para a fruta, dar é uma necessidade como, para a raiz, receber é uma necessidade. Vós sois bons quando falais plenamente acordados. Porém, não sois maus quando adormeceis enquanto vossa língua tartamudeia sem propósito: mesmo um discurso gaguejante pode fortalecer uma língua débil. Vós sois bons quando andais rumo a vosso objetivo, firmemente e com passos intrépidos. Porém, não sois maus quando ides coxeando: mesmo aqueles que coxeiam não andam para trás. Mas vós sois fortes e velozes, quardai-vos de coxear por complacência na presença dos coxos. Vós sois bons de inúmeras maneiras, e não sois maus quando não sois bons: estais apenas ociosos e indolentes. Pena que as gazelas não possam ensinar a velocidade às tartarugas! Na vossa ânsia pelo nosso Eu-gigante está vossa bondade; e essa ânsia está em todos vós. Mas em alguns, essa ânsia é uma torrente que se precipita impetuosamente para o mar, carregando os segredos das colinas e as canções da floresta; em outros, é uma corrente preguiçosa que se perde em meandros e serpenteia, arrastando-se, antes de atingir a costa. Mas que aquele que muito deseja se guarde de dizer àquele que pouco deseja: ‘Por que és lento e atrasado?’ Pois o verdadeiramente bom não pergunta.

DAS COMPRAS E DAS VENDAS

E um comerciante disse: “Fala-nos das compras e vendas."

E ele respondeu: “A vós, a terra oferece seus frutos, e nada vos faltará se somente souberdes como encher as mãos. É trocando as dádivas da terra que encontrareis a abundância e sereis satisfeitos. E, contudo, a menos que a troca se faça no amor e na justiça, ela conduzirá uns à avidez e outros à fome. Quando vós, trabalhadores dos campos e dos vinhedos, encontrardes no mercado os tecelões, os oleiros e os colhedores de especiarias, invocai o espírito mestre da terra para que desça sobre vós e santifique as balanças e os cálculos que comparam valor com valor. E não permitais que aqueles que têm as mãos vazias tomem parte nas vossas transações, eles que vos venderiam suas palavras em troca de vosso labor. A tais homens devereis dizer: ‘Vinde conosco aos nossos campos ou ide com nosso irmãos para o mar e jogai vossa rede: pois a terra e o mar serão tão generosos para convosco quanto o são para conosco.’ Mas quando vierem os cantores e os bailarinos e os flautistas, comprai de suas ofertas. Pois eles também colhem frutos e incensos e, embora feitos de sonhos, seus produtos são vestimenta e alimento para vossas almas. E antes de deixardes o mercado, vede que ninguém se retire de mãos vazias. Pois o espírito mestre da terra não descansará em paz sobre o vento enquanto as necessidades do mais humilde dentre vós não tiverem sido satisfeitas.

DAS ROUPAS

E um tecelão disse: Fala-nos das roupas.

E ele respondeu: “Vossos trajes ocultam muito de vossa beleza, porém, não escondem o que não é belo. Embora procureis nos trajes a proteção libertadora de vossa intimidade, neles podeis encontrar arreios e cadeias. Pudésseis enfrentar o sol e o vento com mais epiderme e menos roupa; pois o sopro da vida está na luz do sol e a mão da vida está no vento. Alguns dentre vós dizeis: ‘O vento do Norte foi quem teceu os trajes que vestimos.’ Eu, porém, vos digo: ‘Sim, foi o vento do Norte. Mas a desonra foi o seu tear e o enfraquecimento dos nervos, o seu fio. E quando completou seu trabalho, reiu-se na floresta. Não esqueçais que a decência é um escudo contra o olhar do impuro. E quando o impuro desaparecer, que será a decência senão um obstáculo e uma mancha na alma? E não esqueçais que a terra se rejubila de sentir vossos pés desnudos e que os ventos anseiam por brincar com vosso cabelo."

Khalil Gibran

DAS HABITAÇÕES

Então, um pedreiro aproximou-se e disse: "Fala-nos das habitações."

E ele respondeu e disse: “Construí com vossos sonhos um abrigo no deserto antes de construir uma moradia no recinto da cidade. Pois, da mesma forma por que voltais para casa no crepúsculo, assim faz o viajante que vive em vós, o sempre distante e solitário. Vossa casa é o vosso corpo mais amplo. Cresce ao sol e dorme no silêncio da noite, e também ela tem sonhos. Vossa casa não sonha e, sonhando, escapa da cidade para o bosque ou a colina? Ah! Se pudesse enfeixar vossas casas na minha mão e, como um semador, espalhá-las nas florestas e nas campinas! Fossem os vales vossas ruas e os atalhos verdejantes vossas veredas, para que pudésseis procurar-vos uns aos outros através dos vinhedos e voltar com a fragrância da terra nas vossas roupas. Contudo, o tempo dessas coisas ainda não chegou. No seu temor, vossos pais juntaram-vos demasiadamente perto uns dos outros. E esse medo sobreviverá por algum tempo ainda. E durante esse tempo, as muralhas de vossas cidades separarão vossos campos de vossos lares. E dizei-me, povo de Orphalese, que possuís nessas habitações? E que objetos quardais atrás dessas portas trancadas?

Acaso possuís a paz, esse impulso tranqüilo que revela vossa potência? Possuís as recordações, essas abóbadas cintilantes que se estendem sobre os cumes do espírito? Possuís a beleza que conduz o coração dos objetos confeccionados com madeira e pedra para a montanha sagrada? Dizei-me, possuís tudo isso em vossas casas? Ou tendes somente o conforto, e a cobiça do conforto, esse desejo furtivo que entra em casa como visita, e depois torna-se hóspede, e depois dono? Sim, e torna-se também domador e, com forcado e açoite, reduz a títeres vossos desejos mais vastos. Embora suas mãos sejam de seda, seu coração é de ferro. Ele vos embala até dormirdes, só para rondar vosso leito e zombar da dignidade de vosso corpo. Zomba também de vossos sentidos normais e deita-os na penugem macia como um vaso frágil. Na verdade, vossa paixão pelo conforto assassina as paixões mais nobres de vossas almas e, depois, zombeteira, acompanha seu enterro. Mas vós, filhos do espaço, vós, os inquietos no repouso, vós não caireis em armadilhas nem sereis domesticados. Vossa casa não será uma âncora, mas um mastro. Não será uma fita reluzente que recobre um ferimento, mas uma pálpebra que protege o olho. Não dobrareis as asas para poder atravessar as portas, nem curvareis a cabeça para não bater nos tetos, nem retereis vossa respiração para não sacudir e abalar as paredes. Não morareis em tumbas feitas pelos mortos para os vivos. E apesar de sua magnificência e explendor, vossa casa não conterá vosso segredo nem abrigará vossa nostalgia. Pois aquilo que é ilimitado em vós mora no castelo do firmamento, cuja porta é a bruma da aurora e cujas janelas são os cânticos e os silêncios da noite.” 

DA FLORESTA

Na floresta não existe nem rebanho, nem pastor. 
Quando o inverno caminha, segue seu distinto curso como faz a primavera.
Os homens nasceram escravos daquele que repudia a submissão
Se ele um dia se levanta, lhes indica o caminho, com ele caminharão
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o pasto das mentes,
e o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor
Na floresta não existe ignorante ou sábio
Quando os ramos se agitam, a ninguém reverenciam
O saber humano é ilusório como a cerração dos campos
que se esvai quando o sol se levanta no horizonte
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o melhor saber,
e o lamento da flauta sobrevive ao cintilar das estrelas
Na floresta só existe lembrança dos amorosos
Os que dominaram o mundo e oprimiram e conquistaram,
seus nomes são como letras dos nomes dos criminosos
Conquistador entre nós é aquele que sabe amar
Dá-me a flauta e canta!
E esquece a injustiça do opressor
Pois o lírio é uma taça para o orvalho e não para o sangue
Na floresta não há crítico nem sensor
Se as gazelas se perturbam quando avistam companheiro, a águia não diz: ‘Que estranho’
Sábio entre nós é aquele que julga estranho
apenas o que é estranho
Ah, dá-me a flauta e canta!
O canto é a melhor loucura
e o lamento da flauta sobrevive aos ponderados e aos racionais
Na floresta não existem homens livres ou escravos
Todas as glórias são vãs como borbulhas na água
Quando a amendoeira lança suas flores sobre o espinheiro,
não diz: ‘Ele é desprezível e eu sou um grande senhor’
Dá-me a flauta e canta!
Que o canto é glória autêntica,
e o lamento da flauta sobrevive ao nobre e ao vil
Na floresta não existe fortaleza ou fragilidade
Quando o leão ruge não dizem: ‘Ele é temível’
A vontade humana é apenas uma sombra que vagueia no espaço do pensamento,
e o direito dos homens fenece como folhas de outono
Dá-me a flauta e canta!
O canto é a força do espírito,
e o lamento da flauta sobrevive ao apagamento dos sóis
Na floresta não há morte nem apuros
A alegria não morre quando se vai a primavera
O pavor da morte é uma quimera que se insinua no coração
Pois quem vive uma primavera é como se houvesse vivido séculos
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o segredo da vida eterna,
e o lamento da flauta permanecerá após findar-se a existência

O Profeta. Gibran kaliu Gibran: www.youtube.com/embed/4gIwWMMgURY

DA BELEZA

E um poeta disse: “Fala-nos da beleza.
E ele respondeu:
“Onde procurareis a beleza e como a podereis encontrar a menos que ela mesma seja vosso caminho e vosso guia?
E como podereis falar a menos que ela mesma teça vossas palavras?
Os aflitos e os feridos dizem:? ‘A beleza é amável e suave.
Como uma jovem mãe, meio encabulada na sua glória, ela caminha entre nós.’
Os apasixonados dizem: ‘Não, a beleza é uma força poderosa e temível.
Como uma tempestade, ela sacode a terra abaixo de nós e o céu acima de nós.’
Os cansados e os gastos dizem: ‘A beleza é um murmúrio suave. Fala em nosso espírito. Sua
voz cede aos nossos silêncios como uma luz tênue que treme por medo da sombra.’
Mas os turbulentos dizem: ‘Nós a ouvimos gritar entre as montanhas, e com seus gritos
chegavam o tropel de cavalos, o bater de asas e o rugir de leões.’
À noite, os guardas da cidade dizem: ‘A beleza despontará do Oriente com a alvorada.’
E, ao meio-dia, os trabalhadores e os transeuntes dizem: ‘Nós a temops visto inclinada sobre a terra, das janelas do poente.’
No inverno, os prisioneiros da neve dizem: ‘Ela virá com a primavera, pulando sobre as colinas.’
E no calor do verão, os ceifeiros dizem: ‘Nós a vimos dançar com as folhas do outono, e havia neve no seu cabelo.’
Todas essas coisas, dissestes da beleza.
Na verdade, porém, não falastes dela, mas de desejos insatisfeitos.
E a beleza não é um desejo, mas um êxtase.
Não é uma boca sequiosa, nem uma mão vazia que se estende, mas, antes, um coração inflamado e uma alma encantada.
Ela não é a imagem que desejais ver, nem a canção que desejais ouvir, mas, antes, a imagem
que contamplais com os olhos velados e a canção que ouvis com os ouvidos tapados.
Não é a seiva por debaixo da cortiça enrugada, nem uma asa atada a uma garra, mas, sim, um
pomar sempre em flor, e uma multidão de anjos em vôo.
Povo de Orphalese, a beleza é a vida quando a vida desvela seu rosto sagrado.
Mas vós sois a vida, e vós sois o véu.
A beleza é a eternidade olhando para si mesma num espelho.
Mas vós sois a eternidade, e vós sois o espelho."

Khalil Gibran - O Profeta

DO PRAZER

Então, um ermitão que visitava a cidade uma vez por ano, acercou-se e disse: “Fala-nos do prazer."
E ele respondeu, dizendo:
“O prazer é uma canção de liberdade, mas não é a liberdade.
É o desabrochar de vossos desejos, mas não o seu fruto.
É um abismo olhando para o cume, mas não é nem o abismo nem o cume.
É o engaiolado ganhando o espaço, mas não é o espaço que o envolve.
Sim, na verdade, o prazer é uma canção de liberdade.
E de bom grado eu vo ouviria cantá-la de todo vosso coração; porém, não gostaria que
perdêsseis vosso coração no canto.
Alguns de vossos jovenms procuram o prazer como se fosse tudo na vida, e são condenados e
repreendidos.
Eu preferiria nem condená-los, nem repreendê-los, mas deixá-los procurar.
Pois encontrarão o prazer, mas não só ele.
Sete são suas irmãs, e a útlima dentre elas é mais bela que o prazer.
Não ouvistes falar do homem que cavava a terra à procura de raízes e descobriu um tesouro?
E alguns de vossos anciãos recordam seus prazeres com remorso, como se fossem erros
cometidos num estado de embriaguez.
Mas o remorso é o escurecimento da alma e não o seu castigo.
Deveriam antes recordar seus prazeres com reconhecimento, como recordariam uma colheita
de verão.
Todavia, se acharem conforto no remorso, deixemo-los se confortarem.
E há entre vós aqueles que não são jovens para procurar, nem velhos para recordar; e no seu temor de procurar e recordar, desprezam todos os prazeres por medo de afugentar ou ofender o
espírito.
Porém, na sua renúncia está seu prazer.
E, assim, eles também descobrem um tesouro embora cavem com mãos trêmulas à procura de raízes.
Mas, dizei-me, quem pode ofender o espírito?
Ofende o rouxinol a quietude da noite ou o pirilampo, as estrelas?
E poderá vossa flama ou vossa fumaça sobrecarregar o vento?
Credes que o espírito é um poço tranqüilo que podeis perturbar com um bastão?
Muitas vezes, ao negardes a vós mesmos um prazer, nada mais fazeis do que represar vosso
desejo nos recessos de vosso Eu.
E quem sabe se o que parece omitido hoje não espera pelo amanhã?
Mesmo vosso corpo conhece sua herança e seus direitos, e vós não o podeis iludir.
E vosso corpo é a harpa de vossa alma: a vós pertence tirar dele música melodiosa ou ruídos
dissonantes.
E agora perguntais em vosso coração: ‘Como distinguiremos o que é bom no prazer do que é mau?"

O Profeta. Gibran Khalil Gibran

DA PRECE

Então, uma sacerdotisa disse: “Fala-nos da prece."

E ele respondeu, dizendo:
Vós rezais nas vossas aflições e necessidades; pudésseis rezar também na plenitude de vossa 
alegria e nos dias de abundância.
Pois que é a oração senão a expansão de vosso ser no éter vivente?
E se vos dá conforto exalar vossas trevas no espaço, maior conforto sentireis quando
exalardes a aurora de vosso coração.
E se não podeis reter as lágrimas quando vossa alma vos chama para orar, ela vos deveria
esporear repetidamente, embora chorando, até que aprendêsseis a orar com alegria.
Quando rezais, elevais-vos até encontrardes, nas alturas, aqueles que estão orando à mesma
hora, e que, fora da oração, talvez nunca encontrásseis.
Que vossa visita a esse templo invisível não tenha, portanto, nenhuma outra finalidade senão
o êxtase e a doce comunhão.
Pois se penetrardes no templo unicamente para pedir, nada recebereis.
E se nele entrardes para vos curvar, ninguém vos erguerá.
E mesmo se aí fordes para mendigar favores para outros, não sereis atendidos. Basta-vos
entrar no templo invisível.
Não vos posso ensinar a rezar com palavras. Deus não escuta vossas palavras, exceto quando
Ele próprio as pronuncia através de vossos lábios. E não vos poso ensinar a oração dos mares e das
florestas e das montanhas.
Mas vós que nascestes das montanhas e das florestas e dos mares, podeis encontrar suas
preces no vosso coração.Se somente escutardes na quietude da noite, ouvi-los-eis dizer em silêncio: Deus nosso, que
és nosso Eu-alado, é Tua vontade em nós que quer, é Teu desejo em nós que deseja, é Teu impulso
em nós que pode transformar nossas noites, que Te pertencem, em dias que também Te pertençam.
Nada Te podemos pedir, pois conheces nossas necessidades antes mesmo que nasçam em nós.
Tu és nossa necessidade; e dando-nos mais de Ti, Tu nos dás tudo.

O Profeta - Da Prece - Khalil Gibran: www.youtube.com/embed/UpFQSf0JoUo

DO TEMPO

E um astrônomo disse: “Mestre, que dizes do tempo?"
E ele respondeu:
'Gostaríeis de medir o tempo, o ilimitado e o incomensurável.
Gostaríeis de ajustar vosso comportamento e mesmo de reger o curso de vossas almas de
acordo com as horas e as estações.
Do tempo, gostaríeis de fazer um rio, na margem do qual vos sentaríeis para observar correr
as águas.
Contudo, o que em vós escapa ao tempo sabe que a vida também escapa ao tempo, e sabe que
ontem é apenas a recordação de hoje e amanhã, o sonho de hoje, e que aquilo que canta e medita em vós continua a morar dentro daquele primeiro momento em que as estrelas foram semeadas no
espaço.
Quem, dentre vós, não sente que seu poder de amar é ilimitado?
E, contudo, quem não sente esse amor, embora ilimitado, circunscrito dentro do seu próprio
ser, e não se movendo de um pensamento amoroso a outro, e de uma ação amorosa a outra?
E não é o tempo, exatamente como o amor, indivisível e insondável?
Se, todavia, deveis dividir o tempo em estações, que cada estação envolva todas as outras
estações, e que vosso presente abrace o passado com nostalgia e o futuro com ânsia e carinho."

Do Tempo - Khalil Gibran: www.youtube.com/embed/2nhPq9oB-kM

DA AMIZADE

E um adolescente disse: “Fala-nos da amizade."
E ele respondeu, dizendo:“Vosso amigo é a satisfação de vossas necessidades.
Ele é o campo que semeais com carinho e ceifais com agradecimento.
É vossa mesa e vossa lareira.
Pois ides a ele com vossa fome e o procurais em busca de paz.
Quando vosso amigo expressa seu pensamento, não temais o ‘não’ de vossa própria opinião,
nem prendais o ‘sim’.
E quando ele se cala, que vosso coração continue a ouvir o seu coração, porque na amizade,
todos os desejos, ideais, esperanças, nascem e são partilhados sem palavras, numa alegria
silenciosa.
Quando vos separais de vosso amigo, não vos aflijais.
Pois o que amais nele pode tornar-se mais claro na sua ausência, como para o
alpinista a montanha aparece mais clara, vista da planície.
E que não haja outra finalidade na amizade a não ser o amadurecimento do espírito.
Pois o amor que procura outra coisa a não ser a revelação de seu próprio mistério não é amor,
mas uma rede armada, e somente o inaproveitável é nela apanhado.
E que o melhor de vós próprios seja para vosso amigo.
Se ele deve conhecer o fluxo de vossa maré, que conheça também o seu refluxo.
Pois, que achais seja vosso amigo para que o procureis somente a fim de matar o tempo?
Procurai-o sempre com horas para viver: o papel do amigo é de encher vossa necessidade,
não vosso vazio.
E na doçura da amizade, que haja risos e o partilhar dos prazeres.
Pois no orvalho de pequenas coisas, o coração encontra sua manhã e sente-se refrescado."

O Profeta. Gibran Khalil Gibran: www.youtube.com/embed/WtZTv-TrLXE

DO ENSINO

Então, um professor disse: “Fala-nos do ensino."
E ele disse:
“Homem algum poderá revelar-vos senão o que já está meio adormecido na aurora do vosso 
entendimento.
O mestre que caminha à sombra do templo, rodeado de discípulos, não dá de sua sabedoria,
mas sim de sua fé e de sua ternura.
Se ele for verdadeiramente sábio, não vos convidará a entrar na mansão de seu saber, mas vos
conduzirá antes ao limiar de vossa própria mente.
O astrônomo poderá falar-vos de sua compreensão do espaço, mas não vos poderá dar a sua
compreensão.
O músico poderá cantar para vós o ritmo que existe em todo o universo, mas não vos poderá
dar o ouvido que capta a melodia, nem a voz que a repete.
E o versado na ciência dos números poderá falar-vos do mundo dos pesos e das medidas, mas
não vos poderá levar até lá, porque a visão de um homem não empresta suas asas a outro homem.
E assim como cada um de vós se mantém isolado na consciência de Deus, assim cada um
deve ter sua própria compreensão de Deus e sua própria interpretação das coisas da terra."

O Profeta. Gibran Khalil Gibran

DA DOR

Vossa dor é o rompimento do invólucro que encerra vossa compreensão. Assim como a 
semente da fruta deve quebrar-se para que seu coração apareça ante o sol, deste modo deveis
conhecer a dor.
Se vosso coração pudesse viver sempre no deslumbramento do milagre cotidiano, vossa dor
não vos pareceria menos maravilhosa que vossa alegria; e aceitaríeis as estações de vosso coração
como sempre aceitastes as estações que passam sobre vossos campos; e contemplaríeis serenamente
os invernos de vossa aflição.
Grande parte de vosso sofrimento é por vós próprios escolhida: é a amarga poção com a qual
o médico que está em vós cura o vosso Eu-doente.
Confiai, portanto, no médico, e bebei seu remédio em silêncio e tranqüilidade: pois sua mão,
embora pesada e dura, é guiada pela suave mão do Invisível, e a taça que ele vos oferece, embora
queime vossos lábios, foi confeccionada com a argila que o Oleiro umedeceu com Suas lágrimas sagradas.
O Profeta. Gibran Khalil Gibran

DA LIBERDADE

Às portas da cidade e em vossos lares, eu vos vi prosternar-vos e adoras vossa própria liberdade, como escravos que se humilham perante um tirano e glorificam-no embora ele os destrua.
Sim, na alameda do templo e à sombra da cidadela, tenho visto os mais livres dentre vós
carregar sua liberdade como um jugo e um grilhão.
E meu coração sangrou dentro de mim; pois só podereis libertar-vos quando até mesmo o
desejo de procurar a liberdade tornar-se um jugo para vós, e quando cessardes de falar da liberdade
como de uma meta e de um fim.
Sereis, na verdade, livres, não quando vossos dias estiverem sem preocupação e vossas noites
sem necessidades e sem aflição, mas, antes, quando essas coisas sobrecarregarem vossa vida e,
entretanto, conseguirdes elevar-vos acima delas, desnudos e desatados.
E como vos elevareis acima de vossos dias e de vossas noites se não quebrardes as cadeias
com que, na madrugada de vossa compreensão, prendestes vossa hora meridiana?
Na verdade, o que chamais de liberdade é a mais fote dessas cadeias, embora seus anéis
cintilem ao sol e vos deslumbrem.
E que quereis rejeitar para serdes livres, senão fragmentos de vós próprios?
Se é um lei injusta que pretendeis abolir, lembrai-vos de que esta lei foi escrita por vossa
própria mão em vossa própria testa.
Não conseguireis extingui-la, queimando vossos códigos nem lavando as faces de vossos
juízes, embora despejeis o mar por cima delas.
E se é um déspota que quereis destronar, verificai primeiro se seu trono erguido dentro de vós
está destruído.Pois como poderia um tirano dominar os livres e os altivos se não tivessem tirania na sua
própria liberdade e vergonha na sua própria altivez?
E se é uma preocupação que quereis eliminar, essa preocupação foi escolhida por vós mais do
que a vós imposta.
E se é um temor que precisais dissipar, o centro desse temor está em vosso coração e não na
mão do temido.
Na verdade, todas as coisas movem-se dentro de vós em constante meio-enlace, as desejadas
e as receadas, aqueles que vos repugnam e aquele a que vos atraem, aquelas de que fugis e aquelas
que procurais.
Essas coisas movem-se dentro de vós como luzes e sombras em pares estreitamente unidos.
E quando a sombra se desvanece e se dissipa, a luz que se demora torna-se a sompbra de uma
outra luz.
É dessa maneira que vossa liberdade, quando perde seus entraves, transforma-se num entrave
para uma liberdade maior.

O Profeta. Gibran Khalil Gibran: www.youtube.com/embed/u6HvIr7ol18

DO CRIME E DO CASTIGO

Então, um dos juízes da cidade acercou-se e disse: “Fala-nos do crime e do castigo.
E ele respondeu, dizendo:
“É quando vosso espírito vagueia sobre o vento que vós, sozinhos e desprevenidos, cometeis
delitos contra os outros e, portanto, contra vós mesmos.
E para redimir-vos do mal cometido, devereis bater à porta dos eleitos e esperar algum tempo
antes de serdes atendidos.
Similar ao oceano é vosso Eu-divino: permanece sempre imaculado.
E, como o éter, ele sustenta somente os alados.
E similar também ao sol é vosso Eu-divino: desconhece os caminhos das tocas e evita o covil
das serpentes.
Mas vosso Eu-divino não habita sozinho o vosso ser.
Em vós, muitoé ainda do homem, e muito não é ainda do homem, mas apenas de um pigmeu
informe que vagueia sonâmbulo nas brumas à procura de seu próprio despertar.
É do homem em vós que quero agora falar: porque é ele, e não o vosso Eu-divino ou o
pigmeu que vagueia nas brumas, quem conhece o crime e o castigo do crime.
Freqüentemente, tenho-vos ouvido falar daquele que comete uma ação má como se não fosse
dos vossos, mas um estranho entre vós e um intruso em vosso mundo.Mas eu vos digo: da mesma maneira que o santo e o justo não podem elevar-se acima do que
há de mais elevado em vós, assim o perverso e o fraco não podem descer abaixo do que há de mais
baixo em vós.
E da mesma forma que nenhuma folha amarelece senão com o silencioso assentimento da
árvore inteira, assim o malfeitor não pode praticar seus delitos sem a secreta concordância de todos
vós.Como uma procissão, vós avançais, juntos, para vosso Eu-divino.
Vós sois o caminho e os que caminham.
E quando um dentre vós tropeça, ele cai pelos que caminham atrás dele, alertando-os contra a
pedra traiçoeira.
Sim, e ele cai pelos que caminham adiante dele, que, embora tenham o pé mais ligeiro e mais
seguro, não removeram a pedra traiçoeira.
E ouvi também isto, embora a palavra pese rudemente sobre vossos corações: o assassinato é
censurável por seu próprio assassínio.
E o roubado não está isento de culpa por ter sido roubado.
E o justo não é inocente das ações no iníquo.
Sim, o agressor é, muitas vezes, a vítima do agredido.
E mais comumente ainda, o condenado carrega o fardo para o inocente e o irreprochável.
Vós não podeis separar o justo do injusto e o bom do malvado, porque ambos caminham
juntos diante da face do sol, exatamente como os fios branco e negro são tecidos juntos.
 E quando o fio negro se rompe, o tecelão verifica todo o tecido e examina também o tear.
Se um dentre vós põe em julgamento a esposa infiel, que pese também na balança o coração
de seu marido e lhe meça a alma com cuidado.
E aquele que deseja fustigar o ofensor, que examine a alma do ofendido.
E se um dentre vós pretende punir em nome da retidão e derrubar a árvore do mal, que
observe as raízes da árvore; e, na verdade, verá as raízes do bem e do mal, do frutífero e do estéril,
entrelaçadas no coração silencioso da terra.
E vós, juízes que desejais ser justos, que julgamento pronunciareis contra aquele que, embora
honesto na carne, é ladrão no espírito?
E como punireis aquele que assassina o corpo, mas é, ele próprio, assissanado no espírito?
E como processareis aquele que, impostor e opressor nas suas ações, é também molestado e
ultrajado?
E como punireis aqueles cujos remorsos já são maiores que seus delitos?
Não é o remorso uma justiça aplicada por esta mesma lei que desejais servir?
E, contudo, não podeis impor o remorso ao coração do inocente, nem retirá-lo do coração do
culpado.
Espontaneamente, ele gritará na noite para que os homens despertem e reconsiderem.
E vós que desejais compreender a justiça, como a compreendereis sem examinar todas as
ações na plenitude da luz?
Somente então sabereis que o ereto e o caído são um mesmo homem, vagueando no
crepúsculo entre a noite de seu Eu-pigmeu e o dia de seu Eu-divino, e que a pedra angular do
templo não supera a pedra mais baixa de suas fundações.”

O Profeta. Gibran Khalil Gibran

DO TRABALHO

Vós trabalhais para acompanhar o ritmo da terra, e da alma da terra.
Pois ser indolente é tornar-se estranho às estações e afastar-se do cortejo da vida, que avança
com majestade e orgulhosa submissão rumo ao infinito.
Quando trabalhais, sois uma flauta através da qual o murmúrio das horas se transforma em
melodia.
Quem de vós aceitaria ser um caniço mudo e surdo quando tudo o mais canta em uníssono?
Sempre vos disseram que o trabalho é uma maldição, e o labor, uma desgraça.
Mas eu vos digo que, quando trabalhais, realizais parte do sonho mais longínquo da terra,
desempenhando assim uma misão que vos foi designada quando esse sonho nasceu.
E, apegando-vos ao trabalho, estareis na verdade amando a vida. E quem ama a vida através
do trabalho, partilha do segredo mais íntimo da vida.
Mas se, em vossas dores, chamardes o nascimento uma aflição e a necessidade de suportar a
carne, uma maldição inscrita na vossa fronte, então eu vos direi que só o suor de vossa fronte lavará
esse estigma.
Disseram-vos que a vida é escuridão; e no vosso cansaço, repetis o que os cansados vos disseram.
E eu vos digo que a vida é realmente escuridão, exceto quando há um impulso.
E todo impulso é cego, exceto quando há saber.
E todo saber é vão, exceto quando há trabalho.;
E todo trabalho é vazio, exceto quando há amor.
E quando trabalhais com amor, vós vos unis a vós próprios, e uns aos outros, e a Deus.
E que é trabalhar com amor?
É tecer o tecido com fios desfiados de vosso próprio coração, como se vosso bem-amado
fosse usar esse tecido.
É construir uma casa com afeição, como se vosso bem-amado fosse habitar essa casa.
É semear as sementes com ternura e recolher a colheita com alegria, como se vosso bem amado fosse comer-lhe os frutos.
É pôr em todas as coisas que fazeis um sopro de vossa alma, e saber que todos os abençoados
mortos vos rodeiam e vos observam.
Muitas vezes ouvi-vos dizer como se estivésseis falando no sono: ‘Aquele que trabalha no
mármore e encontra na pedra a forma de sua alma é mais nobre do que aquele que lavra a terra.
E aquele que agarra o arco-íris e o estende na tela sob formas humanas é superior àquele que
confecciona sandálias para nossos pés.’
Porém, eu vos digo, não no sono, mas no pleno despertar do meio-dia, que o vento não fala
com maios doçura aos carvalhos gigantes do que à menor das hastes da relva; e grande ´somente
aquele que transforma o ulular do vento numa canção tornada mais suave pela sua própria ternura.
O trabalho é o amor feito visível.
E se não podeis trabalhar com amor, mas somente com desgosto, melhor seria que
abandonásseis vosso trabalho e vos sentásseis à porta do templo a solicitar esmolas daqueles que
trabalham com alegria.
Pois se cozerdes o pão com indiferença, cozereis um pão amargo, que satisfaz somente a
metade da fome do homem.
E se espremerdes a uva de má vontade, vossa má vontade destilará no vionho seu veneno.
E ainda que canteis como os anjos, se não tiverdes amor ao canto, tapais o ouvido do homem
às vozes do dia e às vozes da noite.

O Profeta. Kalil Gibran: www.youtube.com/embed/iNrn9ijYnv4

DO COMER E DO BEBER

Quem dera pudésseis viver do perfume da terra e, como uma planta, nutrir-vos de luz.
Mas, já que deveis matar para comer e roubar do recém-nascido o leite de sua mãe para saciar vossa sede, fazei disso um ato de adoração.
E que vossa mesa seja um altar onde os puros e os inocentes da floresta e da planície são sacrificados àquilo que é ainda mais puro e mais inocente no homem.
Quando matardes um animal, dizei-lhe no vosso coração:
‘Pelo mesmo poder que te imola, eu também serei imolado, e eu também servirei de alimento
para outros; pois a lei que te entregou às minhas mãos me entregará a mãos mais poderosas.
Teu sangue e meu sangue nada são senão a seiva que nutre a árove do céu.’
E quando morderdes uma maçã, dizei-lhe no vosso coração:
‘Tuas sementes viveerão no meu corpo, e os brotos de teus amanhãs florescerão no meu
coração, e teu perfume será meu hálito, e, juntos, regozijar-nos-emos em todas as estações.’
E no outono, quando colherdes a uva de vossos vinhedos para o lagar, dizei-lhe no vosso
coração:
‘Eu também sou um vinhedo, e minha fruta será recolhida para o lagar, e, como um vinho
novo, serei guardado em vasos eternos.’
E no inverno, quando beberdes o vinho, que haja no vosso coração uma canção para cada
taça, e que haja na canção um pensamento para os dias do outono, para o vinhedo e para o lagar.



O Profeta. Gibran Khalil Gibran